sexta-feira, 30 de maio de 2014

invejas

  Além da óbvia inveja de quem consegue ganhar dinheiro com sua arte ou mesmo encher uma casa noturna de 30 pagantes para assistir um trabalho autoral, tenho outros alvos para esse sentimento tão familiar e sincero.
   Astronautas: O ser e o nada. Poeira de estrelas. Major Tom. 2001. Flutuar pelo nada por meses . Muitos livros. O casting é essencial, o clima big brother pode ser um problema. Mas a vista é imbatível.
   Surfistas: O sal, o sol, as ondas e as gatinhas bronzeadas que eu nunca peguei e nunca pegarei. Acordar cedo e ver a previsão do tempo, a direção do vento e tomar uma vitamina. Fazer exercício e se divertir ao mesmo tempo. Improvisar sobre o imprevisível. O mar e suas marés.
(O Surfista Preteado é uma mistura solitária das duas atividades, mas super-heróis são um outro assunto)
   Quadrinistas: liberdade total sem restrição de orçamento. Crítica política, ficção científica, comédia, putaria, vale tudo. Só tem que aprender a desenhar e escrever direito. Corto Maltese. Eu queria ser o Corto Maltese, sua moral ao mesmo tempo flexível e coerente. Suas viagens pelo mundo, suas mulheres exóticas e profundas, seus inimigos mortais, amigos eternos e sazonais  e seus aliados circunstanciais. Mas ele é quase um super-herói, aí não vale.
   Stand-ups: Usar fatos da vida real, questões, traumas, defeitos e purificá-los no fogo do riso de desconhecidos.
    Diretores de cinema: Eu queria ser John Cassavetes, ganhar dinheiro como galã de Hollywood e gastar tudo fazendo cinema autoral independente com os amigos, o que não dá um puto. Depois virar ídolo do Scorcese.
    Escritores:  Receber um adiantamento e se trancar em casa para escrever. De vez em quando o editor liga perguntando se já está pronto. Mark Twain manda evitar adjetivos, não consigo. Beckett fugiu da língua-mãe. Manoel de Barros assiste Chaves. O chato é noite de autógrafos, mas faz parte.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Galinha e o Dinossauro

   A galinha é descendente direta dos dinossauros que reinaram sobre a terra. Para sobreviver teve escolher entre a humilhação e a morte. Preferiu a vida sem as insígnias de outrora. Esqueça da imagem prosaica e subalterna que temos do galináceo. Esqueça das suas proporções modestas. Olhe para suas patas, notem as rugas de suas pernas. Imaginem o poder destruidor que retém seu DNA. Olhe para seus olhos arregalados. Não tem alma, como os do peixe, mas tem fogo. O olho de peixe não passa nada. O olho da galinha é olho de predador. Olhem para a crina do galo. Note os movimentos rápidos de sua cabeça. Note seu bico afiado e a força do seu grito. A galinha esconde a nobreza dos lagartos gigantes que reinaram sobre a Terra por milhares de anos.
    Diz uma lenda antiga que planejam retomar o que lhes foi roubado. Uma vez organizados, não teremos chance.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Mini Ensaio de ensaio sobre um Ensaio de Susan Sontag sobre Machado de Assis

   Antes de me atirar com fome ao texto,  sou tomado por um misto de surpresa e orgulho ao me deparar com um ensaio de Susan Sontag sobre Machado de Assis, principalmente sobre "Memórias Póstumas de Brás Cubas".  Como brasileiro nascido no século XX, muito me surpreende que uma ilustríssima autora estrangeira tenha interesse no nosso Machado de Assis, figura tão universal e importante quanto restrita aos nossos círculos literários e listas de leitura de escola.  Lidos por poucos brasileiros e quase por ninguém fora de nosso país. Woody Allen declarou ser seu autor preferido, o que me parece ser um choque de dimensões paralelas. Como assim, eles conhecem Machado de Assis? Eles não são brasileiros!
    Passeando brevemente pela singular biografia de Machado de Assis, Susan Sontag trata mais da originalidade da narrativa em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", uma fictícia e originalíssima autobiografia póstuma na qual o morto, na primeira pessoa, descreve sua vida medíocre com distanciamento irônico e em vários momentos falando com o leitor, como quando um ator em um filme sai da história e faz um comentário debochado diretamente para nós.  Emocionou-me particularmente a revelação de que após ter seu primeiro livro aprovado para publicação, o editor deu como certa a influência que esta teria sofrido do livro "Epitaph of a Small Winner" -título uma tanto explicativo demais da tradução norte-americana.  Como ela nada conhecia do autor, o editor deu de presente o livro e ela, após lê-lo, declarou sofrer uma influência posterior. Senti o mesmo ao conhecer a música de Horace Silver.
     Em Machado, segundo Susan Sontag, e  -acrescento - J.S. Bach, nota-se uma profunda certeza de um futuro reconhecimento póstumo. Delírios de grandeza ou consciência de uma missão, o fato é que estavam certos ambos em continuar ,independente das circunstâncias, produzindo em grande quantidade suas obras que só seriam reconhecidas na sua grandeza muito depois de suas vidas.
     Compartilho com Sontag a opinião em que qualquer fenômeno cultural pode ter uma análise apaixonada e profunda.  Mozart, The Doors, Tati Quebra-Barraco, Godard e novelas mexicanas, todos tem várias camadas. A paixão, profundidade e fluidez de sua prosa me cativa e me faz perguntar por que não a conheci antes.