quinta-feira, 30 de abril de 2015

Golfinhos

   Desconfio que os golfinhos nos são superiores. A linguagem deles que para nós são apenas squik squik, alcança patamares superiores através de seus sonares poderosos e sutis. Através dos sons eles conseguem -informações de Carl Sagan- criar intencionalmente paisagens tridimensionais sonoras. Para avisar que há um tubarão a caminho, simulam a silhueta do reflexo de um tubarão a caminho. E todas as outras situações para que a linguagem pode servir. Poesia sonora espacial. Hologramas de audio. Uma frase que cria um ambiente sonoro. Um parágrafo que É um ambiente sonoro. Imagine que onda seria um gracejo de um golfinho para uma golfinha em forma de um som que imita uma onda em forma de bolha que os envolve. Surfistas, poetas, músicos, escultores, nadadores, dançarinos. Não precisam de carros, não precisam de roupas nem apartamentos. Utilizando pedras, corais e o fundo arenoso do mar, os ecos são planejados e criam castelos impossíveis de água. Apenas feche os olhos.
  Squik, Squik.

quotes quiz:
"We could swim like dolphins."
"Thanks for the fish."

dolphin dance-herbie hancock  https://www.youtube.com/watch?v=iB2Z2DY17yQ




quarta-feira, 22 de abril de 2015

Flash Urbano nº 11 - Noite de sexta

Ela jogou-se na cama aos prantos, abraçando dois travesseiros. Ela os apertava com força, como se pudesse deles extrair a dor que sentia. Não havia mais nada além daquele sentimento puro. Não repetia em sua mente o que a havia conduzido àquela situação. Sorvia aquele momento como se fosse um prazer. Os carros não buzinavam mais, os vizinhos não ouviam música alta depois das 22h. Seu filho pequeno não chorava. Não chovia, não trovejava. Nada mais havia. Em um movimento brusco, virou de costas e fitou a luminária. Ainda soluçava. Nunca gostara daquela luminária. Não tinha sido barata e ele que escolheu. Amanhã procuraria outra.  Buzinou um carro impaciente.  22:30. Horário do caminhão de lixo. Os vizinhos ouvem Bon Jovi. Seu filho dormiu. Parou de chover.  Ligou a Tv. Novela. Perfeito. Chocolate na segunda gaveta. Ainda há esperança.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Flash Urbano n.10 - 1973

    Sua salvação era o sexo dos pombos. Desde que tinha sido preso no DOI-CODI devido a suas posições políticas -Um militar comunista, onde já se viu?-, observar os pombos pela janela era o que mantinha suas sanidade. As suas sessões de tortura que lehe eram reservadas eram mais de natureza psicológica. Hinos militares a volumes ensurdecedores, temperaturas gélidas alternando com o bafo do inferno. A privação do sono começa a fazer efeitos alucinatórios a partir do terceiro dia. Mas havia a janela da qual se via um pátio onde se reuniam pombos. A corte do pombo era um ritual previsível mas com pequenas variações. O pombo seguia a pomba onde quer que ela fosse. Ela voava para a chaminé, lá ia ele atrás. Se ela descia imediatamente após a chegada dele, não havia problema. Não havia protestos, não havia muxuxo. Os pombos seguiam sua programação genética com a inexpressividade de um peixe. Mas havia o movimento frenético do pescoço para frente e para trás. Parecia que estava de alguma forma associado ao movimento das patas. A corte podia durar até dez minutos em média. Eis que, de repente, a pomba resolve continuar onde estava, mesmo com a chegada do pretendente. Sutilmente dava as costas para este, de ladinho. Ele, prontamente a montava e fazia o que tinha de fazer. A cópula durava não passava de ridículos dois segundos. O lance era a corte.
     Quando a temperatura começava a baixar, ele começava a pular. Polichinelos eram familiares. Ele podia imaginar que era um cabo siberiano. A observação dos pombos era melhor quando o clima da sala estava mais quente. Quanto menos movimento, melhor. Difícil era vê-los voando. Invejava com todas suas forças a estupidez dos pombos. Eles podiam voar.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Exercício de Descrição de Personagem N.2

      Tinha raiva do vizinho. Ele não trabalhava, onde já se viu? E vivia nesse apartamento grande, com que dinheiro?  E maconheiro, ainda por cima. Deve ser traficante, com certeza. E ainda cumprimentava "Bom Dia" no elevador, que cara-de-pau. Por ela, tinha que ir pro paredão, crivado de bala. Semana passada teve festa lá na casa do tarado. Com certeza, tarado. Outro dia, olhou para uma adolescente no Shopping. Onde já se viu? Olhou para a bunda dela, ela viu. Quer dizer, quem viu foi a colega, Neide. Mas o segurança pegou o vídeo da câmera de segurança e vai botar na Internet. Ele vai ver só.  Mas nessa festa do tarado tinha mulher tatuada, tinha viado, música alta até tarde. E tinha muito músico cabeludo, essa raça do Demo. Ela só gosta de música de Louvor. Brigou com a mãe, expulsou a velha de casa. Macumbeira, onde já se viu? Tinha até estátua de São Jorge, Cruz Credo!

terça-feira, 14 de abril de 2015

exercício de descrição de personagem n.1

    Chegou a alcançar algum sucesso em algum período distante. Autógrafos semanais, compras à vista, contas de restaurante pagas em cash. Mas nunca deixava que as circunstâncias lhe embotassem a certeza de que tudo passaria. Sabia que não fazia parte daquele universo sorridente, era um passe com prazo de validade. Não esperou ser despedido, se adiantou e pediu para sair. Seu talento era tão grande quanto a sua incompetência social. Não sabia fazer política, alternava entre o desprezo e carência. Idolatrava em segredo a figura do gênio incompreendido. Se fazia de cínico mas na verdade era um romântico. Seu ego grande e frágil precisava de aprovação constante. Era como um balão furado que precisava sempre ser enchido. Depois de dois anos e meio de delírios artísticos sem reconhecimento algum teve que se render a um trabalho que seria absolutamente inimaginável em outros tempos. Nada como o dia-a-dia para mostrar como as coisas são.  Acabaram as reservas e as contas continuavam chegando.
    Boatos sobre a sua sexualidade eram de uma variedade impressionante. Seu olhar era tão expressivo que expressava até o que não sentia, incendiando fantasias alheias. Estava na boca do povo. O nome queimado na praça. Sua vaidade não permitia que ignorasse as opiniões dos outros tanto quanto gostaria. Seguia em sua especialidade: Balzaquianas. Mulheres na casa dos 30 e 40 tem o equilíbrio entre o savoir-faire e o viço da juventude.  O frenesi e a falta de assunto das muito jovens lhe entediava. Precisava de uma boa conversa. Precisava de história, queria mulheres com passado.  Em festas se arrastava acuado pelas paredes mas era imbatível em um Petit- Comitê. Em uma mesa de bar era um virtuose. Seu conhecimento superficial sobre uma variedade absurda de assuntos e suas tiradas mordazes não deixavam pedra sobre pedra. Elas caíam feito moscas. Seu rosto quase bonito não atrapalhava. Não era um cafajeste, quase não mentia. O leve desespero pela maternidade incentivava nelas uma objetividade muito peculiar e proveitosa, que ele aproveitava com discrição e até alguma sinceridade.  Cartas na mesa, sempre. Considerava a sequência de mulheres como uma espécie de compensação pelas dificuldades que a vida dura lhe trazia. Dificuldades filosóficas principalmente. Vivia de renda, possuía alguns apartamentos que herdara e alugava. Não precisava de luxo, vivia quase como um monge, tirando a parte do celibato. Os porteiros não conseguiam decifrar aquele enigma. Era tema diário de discussões de calçada. Faziam até apostas.