terça-feira, 29 de setembro de 2015

Tomás Improta - A VOLTA DE ALICE - making of - 1

https://www.youtube.com/watch?v=v5hMSaq9UIc&feature=youtu.be 
Tive a honra e o prazer de assinar a Produção Musical do disco novo de Tomás Improta que será lançado este semestre.



Besouro Preto Cap.3

   Maria Antônia subia o morro de motoboy, pensando em como dizer à sua mãe que tinha sido despedida. Antes de passar pela caçamba de lixo ao lado do parquinho, notou que o formigueiro parecia maior do que ontem. Desde criança gostava de observar insetos, pediu para descer ali mesmo. Faria o resto do trajeto à pé, depois de dar uma olhada no formigueiro.   Pagou o motoboy e o viu se afastar.  Catou um graveto do chão. Quando estava quase encostando o graveto no formigueiro, dezenas de larvas-tentáculo explodiram as paredes do formigueiro e avançaram em sua direção. Ela soltou um grito que foi rapidamente abafado quando entraram pela sua boca em uma velocidade estonteante. Ninguém viu, já era de noite e o formigueiro ficava atrás da caçamba . As larvas-tentáculo rodopiaram e devoraram suas entranhas fazendo um som de um cardume de piranhas atacando um boi. Ela só pode arregalar os olhos nos seus últimos segundos de vida. Deixaram a pele, os cabelos e as roupas. Estavam bem maiores agora. Serpentearam para dentro da caçamba, que exalava um cheiro forte de gato morto.
(continua)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

lembraram do céu azul

Entre escombros futuros
reconhecer-se-ão de longe
sorrisos constrangidos
-vamos tomar um café?
mas não existem mais cafés
ela ajeitará os cabelos atrás da orelha direita
ele coçará a nuca
ontem teve eclipse
o primeiro pós-apocalipse
lembraram do céu azul
dizem que teve uma colheita no sul
assuntos pretextos
momentos bissextos
bate rebate coração
combinarão de se telefonar
mas não há mais operadoras de celular
no lugar das antenas, buracos no chão
fila da água
fila do pão
roupas rasgadas
fogueira de violão
-nossa, tão bom te ver
-tão bom te ver também
-a noite já vem, ficar na rua é perigoso
-tem razão
despedem-se como se fosse ainda o tempo da fartura
cada um pro seu lado
respectivos abrigos lotados
o acaso cruzará seus caminhos outra vez

ou não

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

língua inventada

como forma de vingança
apelava ao silêncio
ainda que por extenso
este não se aplicasse
como se gritasse pelas pontas dos dedos
uma coleção de segredos
em uma língua inventada
que ninguém entendia nada

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Besouro Preto Cap.2

  A noite veio com chuva. A umidade é boa, o Fungo agradece. Rainha-Mãe gosta e sorri vibrando suas antenas. Não daria ouvidos para o pedido de encontro do Guerreiro Ancião. Já sabia o que ele iria dizer. O Besouro Preto, a Lenda, o Egito, os Extraterrenos. Conhecia aquela história muito antes de comer a Geléia Real e começar a crescer. Sua Missão era parir e gerir mentalmente seus filhos. Mas o Guerreiro Ancião era mais velho do que ela, tinha nascido de sua antecessora. Não podia ser controlado, então era subornado com mimos exclusivos. Havia funcionado até hoje.
   FFP continuava insistindo em uma audiência com a Rainha-Mãe. Os assessores e guardas não levavam a sério aquele velho, mas respeitavam suas história, se não ele já teria sido preso ou até sacrificado. O Besouro Preto era Pré-Alimento de qualidade, não havia com o que se preocupar.
    O Depósito de Pré-Alimento estava quase lotado. Era uma Comunidade Próspera. O primeiro sinal de que algo estava estranho foi quando a carcaça do Besouro Preto começou a vibrar, quase imperceptivelmente. Enquanto isso , no céu, a chuva começava a rarear. A Lua Cheia logo estaria à vista, de trás de nuvens de algodão desfiado. A carcaça vibrava cada vez mais rápido. O Guarda na porta nem desconfiava. De Repente a vibração parou e a carcaça foi rompida em um só golpe de dentro para fora por mil tentáculos brancos, que pareciam larvas. Os tentáculos se espalharam rapidamente pelo depósito inteiro.  Eram Larvas. A Carcaça começou a crescer. Os tentáculos se soltam e tomam vida própria, forçando os portões do depósito. O guarda percebeu um som estranho vindo do depósito. Foi conferir o que acontecia. Foi a primeira vítima. Um dos Tentáculos-Larva o engoliu rapidamente e seguiu em frente pelo corredor. A Rainha sentiu. (continua)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Besouro Preto - cap.1

  O Besouro Preto morreu de velhice. Bateu no prazo de validade marcado em seu DNA. Ele simplesmente parou de andar segundos antes de alcançar a parede do quarto. Três minutos depois, a primeira formiga, o batedor de identificação YYZ-567800,  atraída pelo cheiro, se aproxima e encosta suas antenas ao longo do corpo. Confirmado. Enviando sinais para a Equipe de Resgate de Pré-Alimentos. Em 15 segundos chegam começam o trabalho. O Besouro Preto - que deixa família, viúva grávida de 350 filhos - é eficientemente desmontado membro a membro. Patas, antenas e asas. Dependendo do tamanho da peça, é carregada individualmente ou em grupos de até 3 formigas. A carcaça restante depois é carregada pela subequipe 93, composta de 36  formigas robustas, criadas à base de uma mistura fortificante especial para os carregadores. A Rainha já recebia os sinais da operação em andamento. Estava satisfeita. A Equipe 17 era extremamente eficaz, destaque na comunidade. Era uma operação tranquila, não havia nenhum animal doméstico naquela casa, que no momento estava sem nenhum humano. A próxima chegada estava prevista para daqui a 5 ciclos. Mas eles tinham um alto padrão para manter, todos estavam sendo monitorados para uma possível promoção. Operações Externas de Alto Risco. O risco era maior, assim como o prestígio. E havia a vantagem da nova dieta, MindFuller 57, que operava mudanças externas e internas no indivíduo. Aumento de massa muscular, aumento de Q.I. e aumento de cota de alimentação. Uma provável diminuição do tempo de vida, mas valia a pena.
    Havia poucos anciãos sobreviventes da Equipe de Operações Externas de Alto Risco.O mais respeitado era  FFP-002301, que chegara a conquistar uma toca individual e alimentação a domicílio. Um Herói. Tinha sido o líder do histórico resgate de um gato morto no meio fio, em plena rua. A operação envolveu 15 mil formigas e durou uma semana, sem descansp. Rodízio de 4 equipes. FFP ficou ligado direto, a base de ANFETONOSOL. Era uma rua em uma favela, não havia retirada de lixo. Mas muita gente passava por ali, era perto do lixão. Muita competição por aquele tesouro. A equipe de resgate precisou terceirizar a defesa com Saúvas Mercenárias, essenciais para garantir o transporte seguro do Pré-Alimento , que gerou Fungo para a comunidade por um semestre inteiro.
   Mas havia algo diferente naquele besouro. Sua linhagem milenar vinha do Egito e suspeitava-se de conexões extraterrenas. Havia lendas que corriam à boca pequena.  FFP, ao saber que traziam um Besouro Preto para a Comunidade, tentou marcar uma sessão com a Rainha. Mas ela estava ocupada com a expansão das Dependências e precisava urgentemente de Fungo para sustentar o aumento de trabalho com as Obras de escavação. Não tinha tempo para um velho cheio de manias, muito menos dar ouvidos a lendas populares. Este foi seu grande erro.  (continua)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Flash Urbano n. 16 - padaria e portão

  Esperava na padaria da esquina, tomando um café o mais lentamente que pudesse. Seus aliados eram seus óculos escuros, dois jornais de oposição e uma revista governista. O calor já dava sinais de que iria se tornar insuportável a qualquer momento mas ele insistia em calça comprida, sapatos e uma camisa preta. Sua mesa estava em um canto sob o toldo, ao lado de uma mesa desocupada, felizmente. Para fazer passar o tempo que precisava esperar, adotava a técnica de fazer os pedidos um a um. Primeiro: café. Segundo: Pão na chapa. Terceiro: suco de laranja. Quarto: outro café. Já são 9:30. Não deve demorar muito. A moça que o servia não se esforçava nem um pouco para disfarçar sua reprovação ao esforço excedente que a causava. Vingava-se ignorando seus pedidos até que ele levantasse e sacudisse os braços compridos de uma forma estranhamente espalhafatosa para um homem de meia-idade. Aí a moça vinha, quase bufando. Velho folgado. Final Libertadores. Emmy. 9:38. Estava funcionando. Abre-se a porta do prédio antigo sem elevador que ele observava do outro lado da rua de trás dos óculos escuros . Finalmente! Eis que sai um aposentado de bermudas com um poodle grisalho. Ainda não. Será que ela não vai ao trabalho hoje? Terei que voltar amanhã. Governo anuncia aumento de impostos. Estréia de exposição de Matisse. 9:47. Pode estar atrasada hoje, apesar de não ser do seu feitio. A porta branca abra outra vez. É ela. Vestido florido e cabelo molhado. Perfeita. Está atrasada. Desce a escada com pressa. Ela vai a pé ao trabalho todo dia com suas belas pernas. Pisando na ponta dos pés. Continua linda. Passa quase correndo pela padaria do outro lado da rua. Não nota seu observador. Não nota que todos olham ao vê- la passar. Vamos,vamos, já passa da hora. Vai, linda, vai cuidar da sua vida. Ele só teria sua agonia para lhe oferecer.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O Sommelier de Conversas

    O Sommelier de Conversas vivia para a Conversa Perfeita. Sabia que sua timidez e ceticismo não o permitiriam puxar assunto com todos que encontrava. Gostava desse filtro. Desprezava conversinhas e fofocas em geral. Não conversava sobre o tempo e não sabia nada de futebol. Considerava a Conversa Perfeita uma espécie de Aurora Boreal, uma dádiva rara que dependia de se estar no lugar certo da insondável loteria do Santo Acaso, a única Divindade em que acreditava. E, claro, havia o Casting.
     Gostava muito de sexo mas não conseguia considerar a hipótese de transar com quem não pudesse conversar depois de uma trepada, por melhor que fosse. Muitas de suas melhores conversas haviam sido na cama. A endorfina liberada durante o orgasmo aumentava a tolerância para deboches e críticas carinhosas. Alguns de seus alvos preferidos eram relações passadas e suas personas anteriores. Usava sem pudor de humor autodepreciativo.Criticava com carinho e condescendência seus comportamentos em outras épocas. Pareciam peles de cobra. Mas havia o fantasma da D.R. , seu grande temor. Conversas não precisam ter uma função. Eram o objetivo em si. Uma conversa também pode ser uma tortura. Principalmente na cama. Não, D.R. não, por favor. O riso era sua salvação. O riso também merecia ser uma divindade.  Já vira uma foto de um Buda gargalhando.
   Conversas durante o ato eram um prazer peculiar:
 -Admiro muita sua concentração.
 -É? - respondeu, ofegante, olhando de banda para trás.
 -Quando você está trabalhando, não se distrai...Você sempre é muito focada. Por exemplo, quando está dando para mim, nada mais existe.
 -Ai!
 -Foi mal.
       Havia criado seus próprios critérios para classificar as conversas. A Fluidez era o mais importante. A Interatividade era essencial.  Uma boa conversa é como um jogo de Frescobol. Não há pontuação, não ˙há vencedor nem perdedor. O negócio é não deixar a bola cair. Há uma categoria muito interessante na qual não se encaixava apesar de ter sua admiração, a dos Contadores de Histórias. Mas estes operavam no registro do Monólogo. A conversa era é uma dança de idéias. It Takes Two to Dance, someone said something like that.  A originalidade de abordagem sobre assuntos comuns lhe interessava mas era difícil superá-lo neste item. O que gostava mesmo era Presença de Espírito. Ah, As línguas latinas e seus detalhes, seus contrastes barrocos, seus maneirismos. Em inglês, bastava apenas 3 letras : WIT. Uma mulher espirituosa é uma criatura irresistível.
      Havia o Bar. O álcool aumenta os décibeis e esquenta os ânimos, liberando opiniões que provavelmente ficariam guardadas. Qualquer assunto poderia ser abordado, Até o futebol, descontando sua ignorância sobre as regras mais básicas e sobre nomes. Admirava Paulo César Caju e Sócrates. Não pelo que jogavam, pois lhe faltava instrumentos para isso. Mas pelo que diziam. Certa ocasião entabulou uma conversa com um amigo que durou 5 horas, por 3 bares. Passaram desde política até o Bizarro, alter-ego maligno do Super-Homem em um universo paralelo. Música, mulheres, músicos, moradores de rua, milho trangênico nas cervejas da Ambev. O Açaí em Belém do Pará não é doce, tem uma função culinária parecida com a farofa.  Por que os tantos artistas fizeram seus melhores trabalhos nos anos 70 ? Mark Twain. Lídia Brondi.
      Sua profissão lhe fizera viajar bastante, colecionando impressões pontuais e politicamente incorretas sobre os lugares em que esteve. Procurava identificar padrões, é da natureza humana. A televisão e os celulares lhe incomodavam bastante, mas não estava imunes a estes. Era como quando se apaixonava. Dividia-se em dois. Identificava o processo do crescimento de uma obsessão ao mesmo tempo que se entregava. Queria ver o circo pegar fogo.

"I needed someone / with a quicker wit than mine / Dorothy was fast" - The Ballad of Dorothy Parker - Prince
   

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Gesto Mágico

   Finalmente conseguira. Depois de livros, tutoriais no youtube, dicas de gurus de colegas de trabalho e anos de tentativas fracassadas, agora sabia que havia conseguido o que tanto almejara. Estava consciente durante seu sonho. Sabia que estava sonhando. Poderia fazer qualquer coisa que imaginasse. Fez um pequeno teste, coçou o nariz. Funcionou. Quis coçar o nariz e o fez. Sim! Estava sentada em uma cadeira no meio de uma sala vazia. Parecia um estúdio de fotografia. Pé-direito alto, paredes brancas, uma delas com fundo infinito. Havia adquirido superpoderes, era a hora de usá-los. Quis um telefone celular para avisar as amigas, pelo menos a Lisa. Não, isso seria um desperdício de superpoderes , poderia fazê-lo quando acordasse. Quis um vaso de flores sobre uma mesa. Em um piscar de olhos, materializaram-se na sua frente. Exatamente como quis: Uma orquídea amarela rodeada de flores do campo. YES! Levantou-se da cadeira e deu uma volta ao redor da sala, que parecia maior. Estava consciente durante o sonho mas seu subconsciente continuava trabalhando. Não havia antes essa rachadura nessa parede. Consertou-a imediatamente. Lembrou-se da mexida do nariz da série "A Feiticeira", que tinha visto no Youtube.  Havia criado seu próprio gesto mágico, que consistia em piscar os olhos ao mesmo tempo que avançava com a  cabeça em um gesto curto e rápido. Assim que abria os olhos, seu desejo se materializava. Chega daquela sala. Queria o espaço sideral. Depois do gesto mágico, estava rodeada de estrelas, mas ainda estava sentada na cadeira. Ao longe via se aproximar sua mãe. O rosto era da Cher, mas sabia que era sua mãe. Coisas de sonho. Não queria a Cher, piscou e devolveu o rosto original de sua mãe, que já estava a 10 metros de distância , com o braços abertos e uma expressão que parecia dizer:
  -Filha, você fez merda mas eu te amo e te perdôo.
   Quis sair de lá. Sua mãe compreenderia. Aliás, não era sua mãe, era apenas uma projeção do subconsciente. Dane-se, queria dançar. Precisava dançar. Imaginou uma pista de dança tocando Daft Punk. One More Time, que já ficou vintage. Aliás, com o próprio Daft Punk tocando na festa. Imaginou um palco, luz de discoteca incluindo bola de espelho. Mirror Ball. Podia ter o John Travolta dançando com a Rihanna. Fariam um belo casal. Pronto. Um grupo de 5 amigas tipo BFF, uns 50 figurantes alto-astral e aquele cara que ela tinha ficado ano passado e nunca mais tinha visto. Qual era o nome dele mesmo? Não importa. Lembrava da cara dele e que beijava bem. Piscou os olhos e tudo que havia imaginado materializou-se na sua frente. Era bom demais. Suas amigas a saudaram com gritos de alegria e abraços coletivos saltitantes. One More Time bombava no som Surround. Luzes psicodélicas as envolviam em um clima de pura alegria. Superpoderes. Ao longe, John Travolta - agora de cabelo black power - rodopiava com Rihanna pelo salão alternando movimentos dos séculos XX e XXI. No bar, Palmirinha fazia bons drinks, ao lado do Loro José e o porteiro Severino, que tinha a cara de José Dirceu. Seu subconsciente continuava fazendo das suas. Eis que abre a porta e quem entra? Aquele cara gato que ela tinha pegado no ano passado mas não sabia o nome. Eles se olharam e rolou um clima. Ele começa a andar em sua direção, seu coração começa a bater mais rápido. De repente a cara dele vira a de um cocker spaniel com a língua de fora.  John Travolta ainda girava com Rihanna pelo salão mas agora em uma velocidade sobre-humana. One More Time repetia mais uma vez. Rihanna se transforma em uma Louva-a-Deus gigante with sexy dance moves. John Travolta solta um grito de mocinha em filme de terror e sai correndo. Chega desse cenário. Uma praia no Tahiti seria a próxima parada. Fez o gesto mágico. Seria uma longa noite.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Flash Urbano n.15 - filho da puta

-Filho da puta!-gritou, com a cara transtornada de raiva.
-(...)
-Fala alguma coisa, seu filho da puta! Fi-lho-da-pu-ta!
   Ele, ciente de que seria inevitável passar por isso,resignava-se a olhar para o chão. Nada que dissesse mudaria nada. Esvaziou-se de qualquer reação e esperava que acabasse aquele sofrimento.
-Seu filho da puta! - e avançou com as unhas tranformadas em garras para o peito dele, que tinha começado a analisar , quase fascinado , como ela podia se transformar em outra pessoa quando estava com raiva. Segurou seus braços, tentando não machucá-la. Filhodaputa,filhodaputa,filhodaputa, repetia mentalmente o xingamento até esvair-se de qualquer sentido. Quem é essa pessoa? Que lingua é essa? O que faço aqui?

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Chato

    Não havia jeito. Achava o cara insuportável de chato. E o fato deste ser gente boa, sempre com a melhor das intenções, o tornava pior ainda. Era como a raiva daquele que recebia ajuda constante por quem o ajudava. "-Quem você pensa que é para me ajudar assim?" "- Como ousa tornar-se tão necessário logo agora que eu preciso tanto?" Era como a fábula da sapo e do escorpião. O escorpião não podia lutar contra a sua natureza. Era além da moral, além do julgamento. Era como aquela canção que dizia "Te perdôo por te trair."
    Quando o chato gente fina começava a falar, a mente do incomodado com sentimento de culpa imediatamente começava a se afastar para longe dali, com um sorriso falso e sutil. Não havia o que fazer, sua boa índole e sua culpa cristã não o permitiriam destratar o chato. Ele não tinha culpa em ser assim. Era de nascença. Talvez de formação. Como assim não tinha culpa? Ele ria e explicava as próprias piadas. Ele sempre ajudava os colegas de trabalho. Ele nunca fazia nenhum comentário sarcástico. Ele era querido por todos. Ele tinha objetivos óbvios. Ele queria salvar o planeta. Ele devia se vestir de Super-Herói e ajudar velhinhas a atravessar a rua, resgatar gatinhos do alto de árvores. Mala do caralho. Ou então era tudo fachada. Na calada da noite ele saía de carro com placa adulterada para atropelar transeuntes distraídos e anotava as baixas em um moleskine amassado, como troféus secretos. Aí sim o tédio do incomodado poderia se desenvolver livremente até uma raiva decente, que cobraria atitudes mais pro-ativas.
     Uma vez - quão ousado! - resmungara sozinho 10 metros após se despedir:
 "-Puta cara mala, meu!" Depois, culpado, olhou em volta para se certificar que ninguém tinha ouvido o desabafo. Chegou a olhar para trás. O chato sorriu e acenou. RAIOS!

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Fluxo

Pílula número 359. Homero já falou que não era pra passar de 350. Só uma vez HAHAHAHA. Foda, essa parada é foda , a cabeça começa a vibrar OU eu começo a sentir como se ela estivesse vibrando OU ela está sempre vibrando mas eu preciso tomar essa parada pra sentir essa vibração . Devem ser minhas veias pulsando mas aí teria que ser a cabeça toda por que afinal de contas a minha cabeça está cheia de vasos sanguíneos, aliás o corpo todo está cheio de vasos sanguíneos. Por que não sinto o corpo todo vibrar? Só sinto a cabeça. E sinto as orelhas quentes. Dizem que sentir calor nas orelhas quer dizer que estão falando mal de mim. Motivo não falta HAHAHAHAA que nem aquela vez que fui no Posto 24 horas noiadaço de 316, meus olhos saltando das órbitas, e eu fiquei encarando a moça da caixa -bonitinha até - quando ela perguntou:- Débito ou crédito? HAHAHAHA eu sou foda. Não tinha mais ninguém, tava só nós dois. Eu não faço nada mas eu gosto de tirar onda. HAHAHAHAHA Eu sou foda. Puta qui Pariu, essa parada é foda, às vezes bate umas ondas de calor. Será que a menopausa é assim HAHAHAHAH Caralho meu coração tá batendo muito rápido. Parece tamborim carreteiro TAQUITICATATAQUITICATA Se eu ficar preocupado com isso ele pode acelerar mais ainda. Homero avisou. Será que eu vou morrer? HAHAHAHA não peraí, tá esquisito , não tô sentindo o braço. Acho que tô de pau duro Cadê meu celular ? CARALHO CADÊ MEU CELULAR? Minha cabeça tá pulsando muito rápido. Nunca foi assim. NUNCA FOI ASSIM  PORRA Eu tenho que ligar pro Homero Eu tenho que ligar pro Homero, ele vai saber o que fazer. Peraí, ele vai sab

Luz Azul

    Ao acordar de um cochilo no sofá em uma tarde fria de domingo, notou uma caixa no meio da sala.  Não temia seu aparecimento sem explicação, apesar dele estar sozinho e o cochilo, de acordo com seu relógio, ter sido de 10 minutos. Temia o também inexplicável sentimento de familiaridade que a caixa que nunca havia visto lhe despertava. Como se já a conhecesse de outras vidas. Sua superfície lisa de um azul desbotado emitia uma leve luz também azul e um som grave e fraco que parecia um motor. Uma espécie de zumbido. Por alguns segundos olhou pela janela e viu a mesma luz saindo de muitas janelas dos prédios à sua volta. Muitas não. Todas. O que seria isso? Que caixa interessante. Uma paz que não conhecia começava a lhe envolver. O zumbido grave aumentava aos poucos, alcançando uma dimensão que não havia percebido antes. A cidade zumbia azul. Ele começou a emitir um som MMMMMMM e tinha cada vez mais dificuldade em piscar os olhos. Sua mente aos poucos lhe abandonava. A luz da tarde lentamente morria e ele não tirava os olhos da caixa.  Ele estava hipnotizado. Nada mais percebia, além de uma paz que ele queria que continuasse. A noite chegava e avançava e ele continuava com os olhos fixos na caixa azul. Não sentia fome tampouco. Seu relógio continuava marcando as horas que passavam. A luz começou a ficar mais forte.
    Ouvia-se batidas de carro nas esquinas. O zumbido e o MMMMM ficavam cada vez mais altos. A luz azul cada vez mais forte começou a dissolver os contornos da caixa, tornando-a uma grande bola azul.  Nuvens de chuva azuladas começam a derramar água por toda a cidade, sem ninguém prestar atenção. A manutenção deficiente faz o sistema elétrico da megalópole entrar em pane em várias áreas. A luz azul subitamente se apaga.
   Acorda do transe, surpreso por já estar de noite. A caixa não estava mais ali, deixando uma espécie de saudade.
-Sonho estranho!
   Salvo pelo apagão.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Desafio Matinal

   O grande desafio de hoje em dia é estar inteiro em cada atividade. O Guru daquela página Haribô do Facebook falou de Mindfullness. Um termo em inglês traz mais credibilidade, principalmente se for dita por alguém de nome asiático. Pode ser chinês, indiano, mas tem que ser asiático. Mas não pode ser russo. Russo é muito estressado. Vou aplicar esta abordagem de "Estar inteiro" ao meu café da manhã:
  Não sei como se chama o artefato que uso para fazer meu queijo quente matinal. Chapa? Não é uma torradeira que cospe torradas, é do tipo chapa quente, um tampa levanta para se colocar o sanduíche e ele ficar bem apertadinho. Tem que colocar manteiga em cima e embaixo, para o pão não grudar. Não podemos exagerar no queijo, se não quando ele derreter, vasa no tal eletrodoméstico, que doravante chamarei de "chapa". A chapa possui tomada de três pinos do tipo do Estados Unidos. Perto do fogão há uma desse tipo, não encontro o adaptador. Tenho que ver isso. Postei uma foto ontem no Instagram de um pôr do sol em meio aos prédios, totalmente Gotham City. Quantos likes será que já tem? Tenho que ver isso.  Estar inteiro, tenho que voltar ao queijo quente. Mas a Joana - aquela filha da puta - bem que podia pelo menos dar uma curtida. Ela tem olho de fotógrafa. A chapa! Retirei da geladeira o queijo e cortei duas fatias tortas e nem muito finas - não será um mesquinho sanduíche de pão -, nem muito grossas, se não o queijo derretido vai cagar tudo. Depois se raspar com faca, pode tirar aquela proteção que não me lembro o nome, e liberar metais tóxicos para o organismo do consumidor. Muito perigoso isso. Metais tóxicos. Hoje ainda não olhei nenhuma mensagem do Facebook. Hoje vence a conta de luz e gás, que não estão mais no débito automático. Hoje faz 3 meses que aquela filha da puta saiu de casa e ainda levou o cachorro. Após colocar as fatias de queijo entre as fatias de pão, passei manteiga nos dois lados do sanduíche. Em seguida, coloquei-o na chapa, fechei e liguei. Opa, já estava ligada, desde quando coloquei na tomada. Enquanto espero a luz verde acender, avisando que o queijo-quente está pronto, posso tomar um café. Joana - aquela filha da puta que me deixou e levou até o cachorro - fazia um café excelente. Não sei fazer café, vou tomar um Nespresso. É absurdamente caro, mas foda-se. Li que iam fazer um sinal de foda-se no Facebook. Acho muito válido. Como seria o sinal? Um dedo médio levantado? Não creio que passe a ideia tão claramente. FODA-SE. Como dizer Foda-se com as mãos? Escolhi o negocinho preto para o Nespresso. Café forte. Incrível a tecnologia mas é caro pra caralho. E ainda devem vir partículas de alumínio em cada xícara. Quando fura o negocinho ,hein? Aqueles furinhos na tampa de alumínio. Deve ter uma página do Nespresso no Facebook. Não vou curtir. Espero a luzinha parar de piscar para poder apertar o botão que faz meu café.  De repente, um sinal sonoro - um estalo seco , metálico - vindo da chapa avisa que a outra luzinha da chapa acendeu. A verde. O queijo. Começou a obra aqui do lado. Esporro do caralho, puta merda. Meu queijo quente ficou pronto. Aparência excelente. Nem muito claro nem muito escuro.  O queijo não vazou. Retiro-o com a faca, tomando cuidado para não raspar a chapa, que pode soltar metais tóxicos. Consistência e espessura também irrepreensíveis. Meu queijo-quente ficou perfeito e fez um belo contraste no prato azul. Vou postar no Instagram. Rápido, antes que esfrie.
   

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

livros e freestyle

    Os livros são minha garantia de felicidade. Mesmo a mais desgraçada das tragédias me trará prazer. Se for bem escrita.  Escrever bem não é escrever difícil nem prolixo. Borges (possível parente distante de Burgess) dizia evitar adjetivos em sequência, pois traziam a suspeita de gradações ilusórias e desnecessárias . Twain evitava adjetivos e advérbios, principalmente os últimos, que odiava.
     Camadas, histórias paralelas, personagens apaixonantes e odiosos, Plot Twists. O mistério do Flow, o Carisma dos livros, aquela mão feminina sedutora que nos levanta pelo nariz e leva para onde quiser, como um cheiro de um bolo assando em um desenho animado.
      Livros ficam ótimos na sala. Ficam ótimos no chão do banheiro, ao redor da cama. Livros sustentando prateleiras de livros. Uma casa de livros.  Livros livres, livros pesados, livros leves. Love. Her back on the table. Bati na bunda dela escorada na mesa com um livro de bolso do Dalton Trevisan. Ficou rosada. Ela pediu mais. Eu disse não, eu queria antes ouvir "Por Favor". Depois teve o que merecia.  Antes do amanhecer saiu de fininho, felina. Um dia ela volta, a maldita.