segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Atalho

Tinha um prazo de duas horas pra entregar o texto que era a última ligação com o mundo externo. Cancelara a tv a cabo e a assinatura no jornal. Todo dia pulava corda no sol matinal da varanda ouvindo Slayer ou James Brown ou Seleção de Sambas Enredo de 1980. Tinha  3 ex-namoradas que às vezes os visitavam para uma foda nostálgica seguida de conversas espirituosas nas quais detonavam cônjuges e exs. Uma de cada vez, com exceção de uma ocasião. Foi estranho, elas se conheciam da faculdade e nutriam uma antipatia mútua. "Universes must not colide", said  George Costanza. (Check your fucking references) Mas não podia dizer que tinha sido ruim. Não, foi muito bom. Especialmente aquela olhada no espelho da porta do armário durante o ato. Sua memória aos poucos ia distorcendo os fatos e cada vez mais se tornava um momento incrível e um combustível melhor para punhetas. O médico recomendava 3 punhetas por semana, é bom para a próstata e aumenta a longevidade. Mas ele tinha mais o que fazer. Seu quarteto de cordas avançava em passos lentos. Já tinha uma página e meia.  No ritmo que estava, ainda demoraria semanas para terminar. Mas agora essa porra da crônica pro jornal não podia esperar. Tinha duas horas. A editora era bem brava, um tesão de óculos e cabelos pretos presos. Não podia apelar pela terceira vez em um semestre para a metalinguagem. A merreca que pagavam valia também como uma forma de não esquecerem seu nome.  Arrumou treta com todos, todos. De repente, um estalo: Podia falar de um artista solteirão chegando nos 50. Multitalentoso, alcançara alguma glória na casa dos 30 e vivia recluso desde que sobrevivera a um tiroteio em um banco no qual foi alvejado na perna, há dois anos. Não havia sequelas físicas além da cicatriz redonda na canela direita. Mas desde então, cada vez menos saía de casa. O dia em que era inevitável sair era antecipado e ensaiado mentalmente uma semana antes. Não gostava de usar elementos autobiográficos, achava uma espécie de trapaça, como trilha sonora em documentários. Mas desta vez não evitaria esse atalho. As palavras saíram fácil. Se ainda houvesse jornais escritos, seu texto veria a luz do sol na manhã de sexta. Mas hoje é tudo diferente. Pronto. SEND.

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